Suprema Corte do Reino Unido decide que mulheres transgênero não são legalmente definidas como mulheres.

Tempos desafiadores para todos os viventes da Terra.Mas para as pessoas trans, esses tempos têm nome: perseguição institucionalizada.

A decisão da Suprema Corte do Reino Unido, que declarou que mulheres trans não se enquadram legalmente na definição de “mulher”, é um marco — mas não no sentido progressista. É um marco do retrocesso. Uma linha de corte entre o que parecia ser um avanço tímido rumo ao reconhecimento de identidades diversas, e uma nova era de exclusão legitimada por sentenças e selos oficiais. A decisão unânime da mais alta corte britânica é mais do que um erro jurídico: é um ataque sistemático às pessoas trans. Um gesto que institucionaliza o apagamento e chancela o preconceito.

Segundo o tribunal, o termo “mulher” deve ser reservado apenas a quem nasceu biologicamente com sexo feminino. Com essa definição, pavimenta-se um caminho perigoso para exclusão em serviços exclusivos para mulheres — de banheiros a abrigos, de políticas públicas a representações legais. A Suprema Corte ainda tenta dourar a pílula dizendo que isso não retira os direitos de pessoas trans, mas o que é um direito que não permite existir plenamente? Ser reconhecida como mulher não é um capricho, é uma questão de dignidade. E negar isso é a forma mais cruel de desumanização: aquela que finge ser neutra, técnica, jurídica.

Como se não bastasse, nos deparamos agora com o caso absurdo de Erika Hilton, parlamentar brasileira, mulher trans, negra, que teve seu visto para os Estados Unidos emitido com o gênero masculino — apesar de portar passaporte e certidão de nascimento que atestam seu gênero feminino. Em 2023, o mesmo país havia emitido um visto correto. Em 2024, algo mudou. E não foi a documentação dela. Foi o clima político global, contaminado por um neoconservadorismo que transforma pessoas trans em inimigas públicas, em corpos “em disputa”, como se a humanidade dessas pessoas pudesse ser validada ou negada por sistemas burocráticos.

Hilton anunciou que levará o caso à ONU. E faz bem. Porque o que está em jogo é mais do que uma linha no formulário de imigração. É o reconhecimento básico de quem ela é. E se uma parlamentar com visibilidade internacional, proteção institucional e suporte jurídico sofre esse tipo de ataque — o que dizer da travesti preta da periferia, que mal consegue alterar seu nome no RG sem sofrer humilhações? É disso que estamos falando.

E como se já não estivéssemos imersos em absurdos suficientes, outro caso escancara o ódio oficializado: a brasileira Gleyce Kelly, mulher trans, presa e deportada dos EUA em abril de 2024, foi colocada em uma cela masculina — sem acesso a tratamentos hormonais, sem reconhecimento de sua identidade, sem qualquer respeito aos tratados internacionais de direitos humanos. Foi impedida de tomar banho por três dias. Essa é a democracia que se vende como “líder do mundo livre”?

Esses episódios não são ruídos isolados. São parte de uma sinfonia organizada do apagamento. A transfobia ganhou formas mais sofisticadas: agora ela vem embalada em pareceres jurídicos, em despachos consulares, em sentenças que usam a linguagem do Direito para sustentar injustiças grotescas. A perseguição às pessoas trans tornou-se uma política de Estado em muitos lugares do globo. E a pergunta que não quer calar é: por quê?

Porque corpos trans expõem o que o sistema mais teme: a liberdade de ser. Pessoas trans desafiam os binarismos, rompem com narrativas ocidentais de gênero, recusam a passividade que o patriarcado exige. Por isso são alvos. Não por “ameaçarem mulheres” — como diz o discurso conservador — mas porque desestabilizam as fronteiras do controle social.

Mas esse movimento também revela uma verdade incômoda: os direitos das pessoas trans nunca estiveram garantidos. Foram apenas tolerados — enquanto não ameaçavam a estrutura. Agora que essas pessoas ocupam mais espaços, microfones, parlamentos, universidades e redes, o sistema reage. E reage com força. Por isso, não há como olhar essas decisões e ações isoladamente. O Reino Unido fecha portas jurídicas, os EUA deportam e negam identidades, e os conservadores brasileiros esfregam as mãos, prontos para importar os retrocessos com selo internacional.

O que está em jogo aqui é mais do que o gênero no papel. É o direito de existir sem ter que se explicar. É o direito de viver sem que sua humanidade precise ser debatida em tribunais. E, sobretudo, é o direito de ser reconhecido como legítimo — não por caridade, mas por justiça.

Neste cenário sombrio, levantar a voz, como faz Erika Hilton, é mais do que um gesto político. É um ato de sobrevivência coletiva. É dizer: “vocês podem até tentar nos apagar nos documentos, nas leis, nos sistemas, mas nossa existência é anterior ao medo de vocês”.

Porque se tem algo que a história já mostrou é que toda vez que tentaram silenciar um grupo, esse grupo voltou mais forte, mais articulado, mais consciente de sua força.

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch

Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.

apoia.se