A história do Brasil é marcada por profundas cicatrizes deixadas pela escravidão, cujas consequências reverberam até os dias de hoje. Entre essas consequências, destaca-se o alarmante índice de mortalidade por alcoolismo entre a população preta. Dados recentes revelam que pessoas pretas são as que mais morrem por causas relacionadas ao consumo de álcool no país, evidenciando uma problemática que transcende o âmbito individual e adentra as esferas social e histórica.
De acordo com a pesquisa “Álcool e a Saúde dos Brasileiros: Panorama 2024”, realizada pelo Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA), em 2022, a taxa de óbitos totalmente atribuíveis ao álcool foi de 10,4 por 100 mil habitantes entre a população preta, enquanto entre pessoas brancas essa taxa foi de 7,9 por 100 mil habitantes, uma diferença de aproximadamente 30%.
Essa disparidade é ainda mais acentuada entre as mulheres. A taxa de mortalidade entre mulheres pretas e pardas foi de 2,2 e 3,2 por 100 mil, respectivamente, enquanto entre mulheres brancas foi de 1,4 por 100 mil.
Esses números não refletem um consumo mais elevado de álcool pela população preta, mas sim a desigualdade racial histórica no país, especialmente pelo acesso desigual a tratamentos. Pessoas pretas encontram-se em situação de maior vulnerabilidade social por diversos fatores, sobretudo o racismo e a pobreza, que dificultam o acesso a uma vida digna, impactando, por exemplo, o acesso a serviços de saúde de qualidade, que são fundamentais para tratar transtornos por uso de álcool.
O Álcool Como Ferramenta de Controle Durante a Escravidão
A relação entre álcool e população preta no Brasil remonta ao período colonial. Durante a escravidão, a cachaça era utilizada como moeda de troca na compra de escravizados africanos e também como forma de pagamento simbólico nos engenhos de cana-de-açúcar. Essa prática visava controlar e submeter os escravizados, utilizando o álcool como ferramenta de dominação.
Além disso, a embriaguez entre os escravizados era frequentemente associada a consequências nefastas, como acidentes de trabalho e desordens, o que reforçava estereótipos negativos e justificava punições severas.
Herança Histórica e Suas Consequências na Saúde Mental
A utilização do álcool como instrumento de controle durante a escravidão deixou marcas profundas na sociedade brasileira. A perpetuação de estigmas e a marginalização da população preta contribuíram para a vulnerabilidade social e para a adoção do álcool como forma de enfrentamento das adversidades. Estudos indicam que o estresse causado pela discriminação racial crônica pode levar a problemas de saúde mental, como ansiedade, depressão e abuso de substâncias, incluindo o álcool.
Essa herança histórica se reflete nas estatísticas atuais, evidenciando a necessidade de políticas públicas que abordem não apenas o tratamento do alcoolismo, mas também o enfrentamento do racismo estrutural e a promoção da equidade no acesso à saúde.
Desigualdade no Acesso ao Tratamento e Políticas Públicas
A desigualdade racial no Brasil se manifesta de diversas formas, inclusive no acesso a tratamentos para dependência alcoólica. Pessoas pretas enfrentam barreiras significativas para acessar serviços de saúde de qualidade, o que contribui para a maior taxa de mortalidade por alcoolismo nesse grupo. A falta de políticas públicas eficazes e a ausência de serviços de saúde mental culturalmente sensíveis dificultam o diagnóstico e tratamento adequado de problemas relacionados ao álcool na população preta.
É fundamental que o Estado implemente políticas públicas que promovam a equidade no acesso à saúde, garantindo que a população preta tenha acesso a tratamentos adequados para dependência alcoólica e outras condições de saúde. Além disso, é necessário investir em ações que combatam o racismo estrutural e promovam a inclusão social, visando reduzir as disparidades existentes.
A Urgência de Enfrentar o Racismo Estrutural na Saúde
As altas taxas de mortalidade por alcoolismo entre a população preta no Brasil são um reflexo do racismo estrutural e das desigualdades históricas que permeiam a sociedade. Para reverter esse quadro, é imprescindível que o país reconheça e aborde as raízes desse problema, implementando políticas públicas que promovam a equidade no acesso à saúde e combatam o racismo em todas as suas formas. Somente assim será possível garantir que todas as pessoas, independentemente de sua cor ou origem, tenham a oportunidade de viver com saúde e dignidade.