Um estudo recente do instituto americano Pew Research revelou que 52% dos brasileiros acreditam que a Bíblia deveria exercer grande influência sobre a legislação nacional. Entre os entrevistados que apoiam essa ideia, a maioria pertence ao crescente segmento evangélico, que nos últimos anos tem ampliado sua presença na política e influenciado diretamente a formulação de leis e políticas públicas. Essa interferência, no entanto, representa uma séria ameaça ao princípio do Estado laico e aos direitos civis de milhões de brasileiros.
O Brasil, constitucionalmente, é um Estado laico. Isso significa que as leis devem ser baseadas em princípios universais, como a igualdade, a liberdade e a dignidade humana, e não em dogmas religiosos específicos. No entanto, a crescente influência de grupos evangélicos na política tem distorcido esse princípio, transformando a fé em uma ferramenta de controle social e opressão. O resultado já pode ser visto em diversas áreas da vida pública, onde o avanço do fundamentalismo religioso tem prejudicado políticas de saúde, educação, cultura e direitos humanos.
Saúde pública e direitos reprodutivos
Uma das áreas mais afetadas pela interferência religiosa na política é a saúde pública, especialmente no que diz respeito aos direitos reprodutivos das mulheres. A pressão evangélica sobre o Congresso e o governo tem impedido qualquer avanço no debate sobre a legalização do aborto, mesmo em casos previstos em lei. Em algumas regiões do país, meninas vítimas de estupro enfrentam barreiras ilegais para interromper a gravidez, devido à influência de médicos e juízes alinhados com ideologias religiosas.
Além disso, projetos que deveriam ampliar o acesso a métodos contraceptivos e educação sexual nas escolas são constantemente atacados por grupos religiosos, que propagam desinformação e associam essas políticas a uma suposta “ideologia de gênero”. O resultado é um aumento no número de gravidez indesejada na adolescência, além da perpetuação da ignorância sobre saúde sexual e reprodutiva.
Educação e censura cultural
A interferência evangélica também tem sido responsável por censuras na educação e na cultura. Livros, filmes e peças teatrais são atacados por políticos ligados a igrejas que tentam impor uma visão moral única à sociedade. Em algumas cidades, vereadores e deputados evangélicos já conseguiram retirar materiais educativos que abordam diversidade sexual e direitos humanos, sob o pretexto de que estariam “doutrinando” crianças.
A perseguição ao ensino de ciências também tem se tornado mais frequente. Teorias amplamente aceitas pela comunidade científica, como a evolução das espécies, são contestadas por políticos que tentam inserir o criacionismo no currículo escolar. Esse tipo de retrocesso prejudica a formação dos estudantes e enfraquece a qualidade da educação no Brasil, isolando o país de debates acadêmicos globais.
Ataques à comunidade LGBTQIA+
A comunidade LGBTQIA+ também sofre diretamente com o crescimento da influência evangélica no poder. Pastores e políticos ligados a igrejas promovem discursos de ódio disfarçados de “liberdade religiosa” e barram avanços legislativos que poderiam garantir mais proteção a essas pessoas. Projetos de criminalização da LGBTfobia e do casamento igualitário enfrentam forte resistência de bancadas evangélicas, que insistem em tratar direitos civis como questões religiosas.
Além disso, medidas que garantiriam o respeito à identidade de gênero, como o uso do nome social para pessoas trans, são constantemente atacadas por esses grupos. Em estados e municípios onde a influência evangélica é mais forte, há perseguições diretas a professores e servidores públicos que tentam implementar políticas inclusivas.
Retrocesso na separação entre Igreja e Estado
A bancada evangélica, que já ocupa um número significativo de cadeiras no Congresso Nacional, busca constantemente ampliar os privilégios das igrejas. Além das isenções fiscais já existentes, há tentativas de aumentar os benefícios financeiros para líderes religiosos e instituições religiosas, utilizando o dinheiro público para fortalecer essas organizações.
O uso da fé como moeda política também tem crescido. Políticos evangélicos fazem campanha dentro de templos, utilizando a religião como ferramenta de manipulação eleitoral. Isso enfraquece o caráter republicano das eleições e cria um cenário onde líderes religiosos passam a ditar as escolhas políticas de milhões de fiéis, muitas vezes explorando o medo e a desinformação.
O perigo de um Brasil teocrático
Se a tendência atual continuar, o Brasil pode se tornar uma nação onde a religião define as regras de convivência social, restringindo liberdades individuais e impondo dogmas religiosos como leis. A história mostra que sociedades que adotaram regimes teocráticos — sejam cristãos, islâmicos ou de outras tradições — resultaram em opressão, perseguições e restrição de direitos.
O Brasil não pode seguir esse caminho. A separação entre Igreja e Estado é fundamental para garantir que todas as pessoas, independentemente de sua fé (ou ausência dela), tenham os mesmos direitos e sejam tratadas com dignidade. Permitir que a Bíblia ou qualquer outro livro religioso influencie a legislação é um passo perigoso para o autoritarismo e a negação da diversidade cultural e religiosa do país.