A trajetória de Lélia Gonzalez, intelectual, feminista e ativista brasileira, é um marco de resistência contra as tentativas de silenciamento promovidas pela ditadura militar (1964-1985). Mulher preta, oriunda de uma família humilde de Belo Horizonte, Lélia desafiou as estruturas coloniais do Brasil ao colocar as vozes da diáspora africana no centro das discussões sobre raça, gênero e classe. No contexto de um regime autoritário que buscava apagar as lutas por igualdade, sua atuação se destacou como um ato de insurgência e afirmação.
A ditadura e o silenciamento das vozes pretas
O regime militar reprimiu sistematicamente os movimentos sociais, mas foi especialmente violento contra aquelas que ousavam questionar o racismo estrutural e a desigualdade de gênero. A ditadura não apenas censurava, mas também invisibilizava vozes que denunciavam as contradições de um país que se autoproclamava uma “democracia racial”. Nesse cenário, a atuação de Lélia Gonzalez foi um ato de coragem que desafiava a falsa narrativa de harmonia racial perpetuada pelo Estado.
Como cofundadora do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978, Lélia denunciava a marginalização histórica da população preta e suas conexões com a herança colonial. Suas análises foram cruciais para evidenciar como o racismo no Brasil era estruturante, não incidental, e como a opressão racial estava profundamente entrelaçada às desigualdades econômicas e sociais que a ditadura tentava ocultar.
A insurgência de Lélia Gonzalez: pensamento crítico e ação política
A ditadura tentou silenciar Lélia Gonzalez não apenas por meio da repressão estatal, mas também através do desdém acadêmico e institucional em relação às produções de intelectuais pretas. Apesar disso, Lélia se destacou como uma das principais teóricas do Brasil ao elaborar conceitos que desafiavam a lógica colonial e reposicionavam a experiência preta como central para a compreensão da cultura e da política na América Latina.
Um de seus principais legados é o conceito de amefricanidade, que ressignifica a identidade preta no Brasil ao conectá-la com as raízes africanas e as lutas da diáspora. Lélia argumentava que a cultura brasileira não poderia ser entendida sem reconhecer a influência determinante das populações africanas escravizadas e de seus descendentes. Essa visão desafiava não apenas o discurso oficial da ditadura, mas também setores progressistas que ignoravam ou minimizavam a questão racial em suas agendas.
Em obras como Lugar de Negro, coescrita com Carlos Hasenbalg, Lélia apontava como as estruturas de poder mantinham a população preta em posições de subalternidade. Ela desmascarava as contradições do regime, que buscava modernizar o Brasil enquanto perpetuava desigualdades raciais herdadas do período escravocrata. A ditadura, ao negar o racismo e silenciar os movimentos antirracistas, reforçava as mesmas hierarquias coloniais que Lélia se dedicou a combater.
Resistência comunitária e força coletiva
Além de sua produção intelectual, Lélia foi uma articuladora política, capaz de mobilizar comunidades e dialogar com diferentes movimentos sociais. Em um contexto de censura e perseguição, sua capacidade de construir pontes entre questões de raça, gênero e classe se tornou uma arma poderosa contra o silenciamento. Sua atuação em organizações como o MNU demonstrava que a resistência não se dava apenas no campo das ideias, mas também na ocupação de espaços políticos e no fortalecimento de redes comunitárias.
Críticas ao presente: o silenciamento que persiste
A trajetória de Lélia Gonzalez nos obriga a refletir sobre como o racismo estrutural e o silenciamento das vozes pretas continuam presentes, mesmo em tempos democráticos. A negligência em relação ao seu legado nas instituições acadêmicas e culturais do Brasil é um sintoma de como a sociedade brasileira ainda não enfrenta plenamente o impacto do racismo e das hierarquias coloniais.
A exigência de Lélia por justiça e reparação ecoa em um momento em que discursos autoritários voltam a ganhar força e políticas públicas voltadas à população preta continuam insuficientes. Suas análises críticas, que conectavam a luta antirracista no Brasil ao movimento global da diáspora africana, são mais atuais do que nunca.
Lélia Gonzalez foi mais do que uma intelectual; foi uma força de resistência em tempos sombrios, uma voz que desafiou o silenciamento imposto pela ditadura e as estruturas racistas do Brasil. Sua contribuição para a luta por igualdade racial e justiça social é um legado inestimável, que continua a inspirar novas gerações de ativistas e pensadores. Resgatar e celebrar sua obra é um ato de resistência contra o silenciamento histórico e um passo fundamental para construir um país mais justo e igualitário.