O sistema educacional brasileiro, embora universal em sua proposta, historicamente tem sido estruturado de forma a perpetuar desigualdades que afetam, de maneira desproporcional, pessoas pretas. Essas desigualdades são resultado de um legado colonial que molda as instituições do país, mantendo estruturas de opressão que negligenciam a realidade e as necessidades da população preta, especialmente na diáspora.
A Negação da História e Identidade Preta
Desde cedo, as escolas brasileiras apresentam um currículo que minimiza ou invisibiliza as contribuições das populações africanas e afrodescendentes para a construção do país. A escravidão, por exemplo, é frequentemente tratada de maneira superficial, sem conectar suas consequências aos problemas raciais contemporâneos. Além disso, figuras pretas relevantes para a história e cultura do Brasil são pouco abordadas, enquanto a narrativa eurocêntrica domina o ensino de história, arte e literatura. Essa omissão priva crianças e jovens pretos de referências positivas e de uma conexão legítima com sua identidade e ancestralidade.
Racismo Estrutural e Barreiras ao Acesso
As barreiras enfrentadas por pessoas pretas no Brasil começam antes mesmo da entrada na escola. O racismo estrutural cria um ambiente onde famílias pretas têm menos acesso a recursos financeiros, moradia digna e saúde de qualidade, fatores que impactam diretamente o desempenho educacional. Nas escolas, essas desigualdades são reforçadas por práticas discriminatórias que dificultam o acesso e a permanência de estudantes pretos em espaços de ensino de qualidade. A elitização do ensino privado e a precarização das escolas públicas perpetuam a exclusão.
O Apagamento da Cultura Afro-Brasileira
Além da exclusão material, o sistema educacional atua como uma ferramenta de apagamento cultural. A Lei 10.639/03, que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana, raramente é implementada de maneira significativa. Muitos professores não recebem treinamento adequado para abordar esses conteúdos, e quando o fazem, a abordagem é frequentemente estereotipada ou superficial. Isso contribui para uma desconexão entre estudantes pretos e suas raízes, enquanto reforça o preconceito nos demais alunos.
Preconceito e Violência no Ambiente Escolar
O ambiente escolar, que deveria ser um espaço de acolhimento e aprendizado, muitas vezes se torna um local de violência psicológica e discriminação para estudantes pretos. A ausência de representatividade no corpo docente e a falta de políticas claras contra o racismo criam um cenário onde o preconceito pode prosperar. Insultos, exclusão social e baixa expectativa por parte de professores são apenas algumas das experiências enfrentadas por crianças e jovens pretos, impactando sua autoestima e desempenho acadêmico.
O Ciclo da Desigualdade
Essa combinação de racismo, exclusão e negligência resulta em um ciclo de desigualdade que limita as oportunidades de pessoas pretas. Jovens pretos são desproporcionalmente empurrados para o abandono escolar ou para trajetórias profissionais de menor prestígio e remuneração, perpetuando a marginalização econômica e social. Mesmo aqueles que conseguem superar essas barreiras enfrentam desafios na inserção no ensino superior e no mercado de trabalho, onde o racismo também está profundamente enraizado.
Caminhos para Transformar o Currículo Escolar e Resgatar a Identidade Preta
As crianças pretas descendentes de africanos no Brasil nascem sem saber suas verdadeiras origens, desconectadas de uma história rica e profunda que foi sistematicamente apagada ou distorcida ao longo de séculos. Essa desconexão não é acidental; é o resultado de um sistema educacional que, propositalmente, mantém o país atrasado no reconhecimento e valorização da cultura e história afro-brasileira e africana. Em vez de promover o orgulho e a autoestima dessas crianças, o currículo tradicional reforça narrativas eurocêntricas que perpetuam a exclusão e o racismo.
Um Passo Importante: A Escola Maria Felipa
A criação da Escola Maria Felipa, idealizada por Bárbara Carine em Salvador, é um marco histórico e um passo corajoso rumo à transformação do cenário educacional brasileiro. Como a primeira escola de cultura afro-brasileira e africana do país, a Maria Felipa oferece um modelo inovador que coloca a identidade preta no centro do processo pedagógico. Inspirada na história de resistência e luta de Maria Felipa, a escola promove um currículo que resgata as raízes africanas, valoriza a ancestralidade e prepara as crianças para enfrentarem o mundo com orgulho de quem são.
No entanto, por mais significativa que seja essa conquista, ela é apenas o início de um longo caminho. O Brasil é um país continental, e a transformação que a Escola Maria Felipa representa precisa ser amplificada e replicada em milhares de outras instituições ao longo de todo o território nacional.
Por que Transformar o Currículo é Essencial?
O currículo escolar brasileiro é uma das principais ferramentas para moldar a visão de mundo das crianças. No entanto, ele permanece estruturado de forma a silenciar histórias e culturas que não se alinham com a perspectiva eurocêntrica. Essa lacuna não é apenas uma questão de omissão; ela representa um ato de violência simbólica contra as crianças pretas, que crescem sem conhecer a grandiosidade de suas origens, e contra toda a sociedade, que perde a oportunidade de aprender com a pluralidade e a riqueza da herança africana.
Uma transformação curricular é essencial para:
Resgatar Identidades: Incluir no currículo a história de resistência de figuras como Zumbi dos Palmares, Dandara, Tereza de Benguela e a própria Maria Felipa. Ensinar sobre os reinos africanos e suas contribuições para o mundo antes do colonialismo.
Promover a Igualdade Racial: Combater o racismo estrutural ao desmantelar narrativas que perpetuam estereótipos negativos sobre pessoas pretas.
Fomentar o Orgulho e a Autoestima: Oferecer às crianças pretas referências positivas e narrativas que celebrem suas origens.
Construir uma Sociedade Mais Inclusiva: Formar gerações mais conscientes e empáticas, capazes de valorizar e respeitar a diversidade.
Caminhos Possíveis para a Transformação
Para que a transformação do currículo escolar brasileiro seja efetiva, é necessário adotar um conjunto de estratégias que alcancem todos os níveis do sistema educacional. Entre elas:
Replicação de Modelos como a Escola Maria Felipa: Investir na criação de escolas que sigam o exemplo de Salvador, adaptando-o às necessidades locais e regionais. Esses modelos devem ser incentivados e financiados por políticas públicas.
Revisão Curricular Nacional: Tornar obrigatória a inclusão de conteúdos afro-brasileiros e africanos em todas as disciplinas, não apenas em história, mas também em literatura, artes, ciências e filosofia.
Formação de Professores: Capacitar educadores para abordar os temas relacionados à cultura afro-brasileira de maneira adequada, respeitosa e profunda. É fundamental combater preconceitos dentro da própria comunidade escolar.
Investimento em Materiais Didáticos: Produzir livros, vídeos, jogos e outros recursos pedagógicos que contemplem a riqueza da cultura e história africana e afro-brasileira.
Participação da Comunidade: Envolver lideranças e movimentos negros na construção e implementação dessas mudanças, garantindo que as vozes pretas sejam centrais nesse processo.
Incentivo à Pesquisa Acadêmica: Promover estudos e produção de conhecimento sobre a contribuição africana para o Brasil, ampliando a base de referência para professores e estudantes.
Um Futuro Necessário
A Escola Maria Felipa é um lembrete de que a mudança é possível e urgente. No entanto, para que esse sonho de educação transformadora alcance todo o Brasil, será preciso coragem, vontade política e um compromisso coletivo. O país precisa de milhares de outras iniciativas como a de Bárbara Carine, espalhadas por cidades grandes e pequenas, resgatando a dignidade, a memória e a força de um povo cuja história é a própria história do Brasil.
Sem essa transformação, continuaremos falhando com nossas crianças, especialmente aquelas que carregam em sua pele a resistência e a beleza da diáspora africana. O futuro de um Brasil mais justo depende da capacidade de olhar para o passado e reconhecer a verdade sobre quem somos e de onde viemos.
Wanderson Dutch
Wanderson Dutch é escritor, dancarino, produtor de conteúdo digital desde 2015, formado em Letras pela Faculdade Capixaba do Espírito Santo (Multivix 2011-2014) e pós-graduado pela Faculdade União Cultural do estado de São Paulo (2015-2016).
Vasta experiência internacional, já morou em Dublin(Irlanda), Portugal, é um espírito livre, já visitou mais de 15 países da Europa e atualmente mora em São Paulo.
É coautor no livro: Versões do Perdão, autor do livro O Diário de Ayron e também de Breves Reflexões para não Desistir da Vida.