Eu só passei a ouvir falar de Malcolm X depois da faculdade de Letras em 2014, o que considero uma grande lástima, mas compreendo que isso se deu muito pelas circunstâncias racistas da vida. Na faculdade, o único pensador intelectual preto que se mencionava era Machado de Assis — e mesmo assim, embranquecido e reduzido a uma espécie de exceção dentro da intelectualidade brasileira. Sempre que surgia o nome de Malcolm X ou de Martin Luther King, era num contexto de desimportância, como se fossem apenas figuras militantes sem profundidade filosófica ou teórica. Era um comentário raso, quase protocolar: “Ah, foi um militante.” Nada sobre sua visão de mundo, nada sobre sua genialidade estratégica, nada sobre sua capacidade de articular a emancipação preta de maneira revolucionária.
O meu contato real com Malcolm X veio por vontade própria, quando comecei a ser atraído, pouco a pouco, pela sua forma de pensar. Era diferente de tudo o que eu havia aprendido até então. Não era apenas um líder de direitos civis, não era apenas um homem de discurso inflamado. Malcolm X era um gigante, um leão, uma força sobrenatural na defesa do poder preto. Foi com ele que compreendi que não sou apenas um homem preto, mas um africano.
Esse foi um choque que reverberou na minha consciência de uma forma que Nietzsche, o meu primeiro salto quântico existencial, não havia provocado. Nietzsche me ensinou sobre a rebeldia contra dogmas, mas Malcolm X me mostrou a ancestralidade como fonte de identidade. Ele me fez enxergar que a identidade preta não é um rótulo atribuído por uma sociedade branca, mas sim um pertencimento inalienável à grandiosa linhagem africana. Passei a me referenciar não pelo que o colonizador decidiu que eu deveria ser, mas pelo que meus ancestrais foram antes da invasão, antes do sequestro, antes do apagamento. Dizem: “Você é brasileiro.” Tá, e daí? Qual o significado real disso além de “carregador de madeira”, pois é isso que “brasileiro” significava originalmente?
A consciência africana foi se expandindo dentro de mim como um incêndio que devora as amarras da alienação colonial. Minha avó, que faleceu em setembro de 2024, aos 110 anos, era africana. Quantas outras avós como a minha viveram e morreram sem conhecer seu verdadeiro nome, sem saber a qual povo pertenciam? Malcolm X foi o grande despertador que me fez perceber o óbvio: sou africano.
Malcolm X: O Revolucionário que Redefiniu o Orgulho Preto
Se hoje celebramos a memória de Malcolm X, 60 anos após seu assassinato, não é porque ele foi apenas um “militante”. Essa palavra, quando usada para reduzi-lo, é um insulto à grandiosidade de seu pensamento. Malcolm foi um estrategista, um filósofo, um visionário da libertação preta. Foi um homem que se recusou a mendigar inclusão no sistema branco e, em vez disso, pregou a soberania preta, a autodeterminação, a reconstrução de uma identidade que a escravidão tentou apagar.
Sua trajetória é um testemunho da capacidade preta de se reinventar e se fortalecer mesmo nas condições mais adversas. Nascido Malcolm Little, ele foi ensinado desde cedo a duvidar do próprio valor, como tantos de nós. Seu pai, um seguidor de Marcus Garvey, foi assassinado por supremacistas brancos. Sua mãe, enlouquecida pela perseguição, foi internada num hospital psiquiátrico. Malcolm cresceu vendo o que acontece com pretos que ousam desafiar o sistema. Ainda assim, ele não apenas sobreviveu: ele floresceu.
Dentro da prisão, encontrou na Nação do Islã um caminho de redenção, mas sua mente era grande demais para ficar confinada a uma única doutrina. Ao viajar para Meca, sua visão se ampliou, e ele percebeu que a luta preta ia além dos EUA: era uma luta africana, uma luta global. Ele se tornou um internacionalista da luta preta, conectando o racismo estrutural estadunidense à colonização e exploração dos povos africanos. Essa foi sua maior ameaça ao sistema: a ideia de que pretos no mundo todo precisavam se unir para criar sua própria soberania.
O Assassinato e o Legado Eterno
Malcolm foi assassinado em 21 de fevereiro de 1965, mas quem realmente puxou o gatilho? O Estado norte-americano sabia que Malcolm não era um simples agitador. Ele era um pensador estratégico que poderia, sim, inspirar revoltas e levantes. Ele não pregava apenas integração racial, mas separação estratégica para fortalecimento preto. Ele dizia que a independência preta era mais importante do que sentar na mesma lanchonete que os brancos. Essa ideia era perigosa para um sistema que se sustenta na subjugação dos povos pretos.
Seu assassinato foi uma tentativa de silenciar uma revolução, mas seu nome nunca morreu. Pelo contrário, tornou-se um código, uma chave que abre portas na consciência de milhões de pretos ao redor do mundo. Seu rosto está estampado em camisetas, seu nome reverberando em discursos, sua ideologia sendo estudada por novas gerações que não aceitam mais as migalhas do sistema.
Malcolm X Vive!
Sessenta anos depois, a pergunta que devemos nos fazer não é apenas sobre o passado de Malcolm, mas sobre o futuro que estamos construindo a partir de seu legado. Como estamos utilizando a consciência que ele nos devolveu? Estamos formando novas gerações que entendam que não são negros, mas africanos? Estamos nos organizando para que o poder preto seja real, e não apenas um slogan?
Malcolm X nos ensinou que não basta querer inclusão. Precisamos querer poder. Precisamos querer o controle sobre nossas narrativas, sobre nossos recursos, sobre nosso destino. Ele nos ensinou que o preto que conhece sua história jamais será escravo, porque sua mente é livre.
Então, 60 anos depois, a pergunta não é se Malcolm X morreu. A pergunta é: quantos de nós acordaram por causa dele?